26.5.06

Folhetim da SOCA: O que une as irmandades?

Façamos agora um zoom-out, deixando Libéria Cristina a dedicar-se, com entusiasmo e fervor, a essa tão bucólica actividade que é a jardinagem nocturna; ou corremos o risco de nos alargarmos em devaneios literários sobre as libérias que vivem presas em todas as mulheres e os perigos inerentes à sua libertação sobre todos os Jacintos do mundo, armadas de napa preta e muito artefacto em metal.

A câmara afasta-se, paira sobre a cidade adormecida e queda-se por momentos numa mancha em movimento que mais tarde ficará conhecida pela Marcha das Ratazanas: nunca esquecida nas lendas desse heróico povo, que corajosamente terá enfrentado sítios que a esta hora ainda estão por descobrir (mas na altura do contar das lendas já foram descobertos). Omitir-se-à, como é sempre o caso, a parte em que ratinhos mais novos e mais velhos terão caído ao chão e terão sido pisados e esmagados pela Imparável Marcha; e editar-se-á outro episódio, que se passará a chamar O Capítulo Em Que O Povo Roedor Providenciou Víveres Para A Grande Travessia. Ficará ainda mais que provado que nenhum dos roedores terá partido qualquer vidro ou incendiado carros; suspeita-se que terá sido coisa do Grupo Dos Gatos do Bairro Sete, com o intuito de levantar falsos testemunhos e provocar animosidades da população em geral sobre a pacífica Marcha das Rapazanas.
Antes de se voltar a afastar, a câmara detem-se ainda sobre a figura da frente, um rato coxo coberto por um pedaço de papel higiénico branco.

Uma janela iluminada atrai agora a atenção. Zoomemos(in) directos àquela luz, não sem antes reparar que, do lado de fora da referida janela, piscam umas neónicas letras. Antes de entrarmos na cena propriamente dita, reparamos num PRIMAV, mas já a câmara se move mais depressa que a nossa visão.

A uma mesa discutem Konieca Zurpeka e Maria Alves. Antes que o leitor diga, ah claro, a dona do café e a empregada de leste, esclareçamos que nem tudo o que parece, é. Poder-se-ia realmente deduzir que a rapariga alta, loira e mamalhuda era uma e a matrona morena de trança e bigode, igualmente mamalhuda, seria a outra. Na verdade, é o caso. Mas para se completarem os esclarecimentos, acrescente-se então que Konieca (Alves de solteira) Zurpeka (de casada) é cunhada de Maria (Zurpeka de solteira) Alves (de casada), existindo ainda uma outra relação entre as duas: Konieca Zurpeka é enteada de Maria Alves, por sua vez casada com o viúvo de Trombolina Libéria da Anunciação Santos que, em vida, fora grande admiradora do Senhor Vasco Granja e amiga chegada de uma prima do conservador do Registo Civil.

O som cada vez mais alto da discussão, interrompe este raciocínio, ao qual se voltará mais tarde.

- Não vou, não vou, diz Maria Alves, abanando violentamente os caracóis.
- Larga os caracóis, mulher! Que assim nunca mais cozem e ouve-me com atenção! Tu tens que ir, estão todas à tua espera!
- Não vou!
- Vais nem que te arraste!
- Olha lá e o meu irmão sabe disso, que tu andas assim à solta na rua?
- Solta na rua andavas tu antes do meu pai te tirar da vida fácil (com vistorias médicas regulares)!
- Vaca!
- Cabra!

O silêncio abate-se sobre as duas, ouvindo-se apenas a água dos caracóis a ferver. Konieca Zurpeka reflecte com os botões do seu casaco verde que, apesar de lhe apetecer enfiar a cabeça da madrasta dentro da panela, o que é certo é que, sem aquela peça fundamental, o plano não é passível de ser implementado.

- Maria.
- Não quero saber disso, não vou.
- Maria, aconteceu uma coisa.
- Não me interessa nada!
- Recebi um sms de Onde Judas Perdeu As Botas…
- Da terra da tua mãe?! O teu pai já mandou tudo o que era dela!
- É um aviso.
- Mas e o que querem mais agora?
- Não é sobre isso. É O Aviso.
- O Aviso? O Aviso Com Maiúscula?
- Esse Mesmo.

Num repente, Maria Alves, levanta-se. As lágrimas começam a cair. Konieca Zurpeka devolve um sorriso também muito molhado e ranhoso. Abraçam-se em sororidade, todos os desacatos esquecidos.

- O meu marido…
- É o meu pai. E o meu marido…
- O meu irmão…
- Todos?
- Tem que ser.

Maria Alves procura o seu casaco verde. Ambas alisam as saias azuis. Saem para a rua, depois de uma paragem pela gaveta dos cutelos. Quase voam sobre as pedras da calçada que agora gemem muito alto.

As vozes gargalham ao longe.

É O Aviso. O Implacável Aviso.

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