27.3.07

Eu tinha um segredo. Era sobre ti. Ou melhor, era sobre nós. Era toda a nossa história concentrada a conta gotas e guardada num frasco de vidro bem fechado, preservado da luz e do ar para não perder o cheiro a nostalgia.
Embora o meu segredo devesse ter evaporado, como todos os segredos - o prazer de um segredo é partilhá-lo -, investi-me em guardiã improvável e nunca o deixei escapar.
Ao princípio, confesso, nem foi por querer, ou por virtude que a modéstia me impeça de revelar - tu sabes que disso tenho pouco. Foi simplesmente porque as palavras para o contar me faltavam, ou demasiado pobres ou demasiado cheias de significado - tu sabes como pode ser assustadora, esta voluptuosidade das palavras. Quando me voltaram as palavras faltou-me a coragem - já carregava culpa suficiente para me arriscar a aumentar o fardo com a reacção de um confidente. E quando o tempo tornou até isto absoleto, continuei a guardá-lo, ao segredo, porque foi a única maneira que encontrei de guardar um bocadinho do que nos aconteceu. Percebes, é que eu quase esqueci o teu rosto – vi uma fotografia tua no outro dia e custou-me a reconhecer-te. As tuas cartas não sei onde estão (perdidas em algum dos muitos baús que fui deixando para trás). A tua voz soou-me estranha da última vez que a ouvi. E a tua presença, essa na verdade nunca a tive.
Vendo bem as coisas, tudo o que tivemos foi o que sentimos, e eu não estava preparada para o perder por banalização. Quando o contasse a alguém, as coisas seriam postas em perspectiva, depois de verbalizadas mostrar-se-iam ridículas, reduzidas à sua própria importância no ‘grande esquema das coisas’, que foi afinal nenhuma. E eu não queria perder-te. Não, nem era isso. Eu não me queria perder, o eu que fui contigo e nunca se apresentou a mais ninguém. Não era um eu perfeito, eu sei, escusas de me dizer. Mas era o meu eu mais vulnerável, o único que não teve medo nem vergonha – nem forma, já que falamos nisso. Nem nunca teve hipótese... - de mostrar a outra pessoa aquilo que normalmente tenta esconder.
Foi por isso que o guardei, o segredo. Uma espécie de nostalgia de um passado todo em potência.
E foi por isso que me custou saber que tu o tinhas contado. Não me interpretes mal, não é que eu quisesse que tu tivesses ficado preso no passado. Nem fiquei ofendida, nem melindrada. É perfeitamente normal e até saudável que tu o tenhas feito - eu é que tenho a mania das nostalgias. Aliás, suponho que se calhar até te devia agradecer. Até devia...
Mas não o fiz quando o enterrei (ao segredo) no outro dia ao almoço: abri o frasco, e deixei escorrer as gotas. E até me ri, de mim, de nós, e da banalidade da história – tal e qual como tinha calculado. E nem te telefonei depois, nem te escrevi, nem penso que o vá fazer.
Ficamos assim, pode ser? Tomas isto como um agradecimento – meio arrevezado, eu sei -, e deixamos o passado em paz, de uma vez por todas.

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