no dia dos namorados, um presente
Para a Isabela e, é claro, para todos que o queiram.
Bem sei que estas palavras não são minhas; são de Rainer Maria Rilke, mas - que diabo! - eu não diria melhor. Em todo o caso, deu-me uma trabalheira procurar os excertos que pretendia e trancrevê-los para aqui.
Os excertos são de cartas escritas pelo poeta entre 1903 e 1908. Lamento imenso, Isabela, não poder oferecer-te o seu autor...
«...”escrever e viver no cio”. – E de facto a experiência artística está tão incrivelmente próxima da sexual, da sua dor e do seu prazer, que estes dois fenómenos afinal só são formas diferentes de uma mesma saudade e beatitude. E se se pudesse em vez de cio – dizer sexo, sexo num sentido vasto, puro, grande, livre das suspeições erróneas das igrejas, então a arte dele seria muito grande e infinitamente importante. A sua força poética é grande, vigorosa como um instinto primitivo, tem ritmos próprios brutais e jorra dele como das montanhas.
(...) Pois não é maduro nem puro o mundo sexual que não é suficientemente humano, mas apenas viril, e então é cio, embriaguês e ímpeto, carregado com todos os preconceitos e arrogâncias com que o ser masculino desfigurou e acabrunhou o amor.
(...) O prazer é uma experiência dos sentidos, não difere do puro olhar ou do puro sabor com que um belo fruto nos enche a língua; é uma experiência grande e infindável que nos é dada, um saber do mundo, a plenitude e o esplendor de todo o saber.
(...) E talvez os sexos sejam mais aparentados do que o que se pensa e a grande regeneração do mundo bem pode consistir em que o homem e a rapariga se hão-de procurar, livres de todos os sentimentos equívocos e repugnâncias, não como contrários, mas como irmãos e vizinhos, e se hão-de reunir como seres humanos para simplesmente, seriamente e pacientemente, assumirem em conjunto a difícil sexualidade que lhes cabe.
(...) As mulheres, em quem a vida permanece e vive, imediata, fecunda, confiante, tiveram de tornar-se no fundo seres humanos mais maduros, seres humanos mais humanos do que o homem fácil, que não vai além da superfície da vida sob o peso de um fruto do ventre e que, petulante e apressado, subestima o que diz amar. (...) um dia a rapariga existirá e a mulher, e o seu nome não voltará a significar um mero contrário do masculino, mas sim qualquer coisa que não faça pensar em complemento e fronteira, mas só na vida e na existência -: o ser humano feminino.
Este progresso transformará a experiência do amor que anda agora tão cheia de erros (muito contra a vontade dos homens ultrapassados, para já), transformá-la-á de cima abaixo, numa relação que há-de ser de ser humano a ser humano e não de homem para mulher. E esse amor mais humano (que será infinitamente desprevenido e suave e bem há-de perfazer-se claramente nos laços que fizer e desfizer) será parecido com o que preparamos com penoso esforço, com o amor que consiste em duas solidões se protegerem, limitarem e reconhecerem.»
Bem sei que estas palavras não são minhas; são de Rainer Maria Rilke, mas - que diabo! - eu não diria melhor. Em todo o caso, deu-me uma trabalheira procurar os excertos que pretendia e trancrevê-los para aqui.
Os excertos são de cartas escritas pelo poeta entre 1903 e 1908. Lamento imenso, Isabela, não poder oferecer-te o seu autor...
«...”escrever e viver no cio”. – E de facto a experiência artística está tão incrivelmente próxima da sexual, da sua dor e do seu prazer, que estes dois fenómenos afinal só são formas diferentes de uma mesma saudade e beatitude. E se se pudesse em vez de cio – dizer sexo, sexo num sentido vasto, puro, grande, livre das suspeições erróneas das igrejas, então a arte dele seria muito grande e infinitamente importante. A sua força poética é grande, vigorosa como um instinto primitivo, tem ritmos próprios brutais e jorra dele como das montanhas.
(...) Pois não é maduro nem puro o mundo sexual que não é suficientemente humano, mas apenas viril, e então é cio, embriaguês e ímpeto, carregado com todos os preconceitos e arrogâncias com que o ser masculino desfigurou e acabrunhou o amor.
(...) O prazer é uma experiência dos sentidos, não difere do puro olhar ou do puro sabor com que um belo fruto nos enche a língua; é uma experiência grande e infindável que nos é dada, um saber do mundo, a plenitude e o esplendor de todo o saber.
(...) E talvez os sexos sejam mais aparentados do que o que se pensa e a grande regeneração do mundo bem pode consistir em que o homem e a rapariga se hão-de procurar, livres de todos os sentimentos equívocos e repugnâncias, não como contrários, mas como irmãos e vizinhos, e se hão-de reunir como seres humanos para simplesmente, seriamente e pacientemente, assumirem em conjunto a difícil sexualidade que lhes cabe.
(...) As mulheres, em quem a vida permanece e vive, imediata, fecunda, confiante, tiveram de tornar-se no fundo seres humanos mais maduros, seres humanos mais humanos do que o homem fácil, que não vai além da superfície da vida sob o peso de um fruto do ventre e que, petulante e apressado, subestima o que diz amar. (...) um dia a rapariga existirá e a mulher, e o seu nome não voltará a significar um mero contrário do masculino, mas sim qualquer coisa que não faça pensar em complemento e fronteira, mas só na vida e na existência -: o ser humano feminino.
Este progresso transformará a experiência do amor que anda agora tão cheia de erros (muito contra a vontade dos homens ultrapassados, para já), transformá-la-á de cima abaixo, numa relação que há-de ser de ser humano a ser humano e não de homem para mulher. E esse amor mais humano (que será infinitamente desprevenido e suave e bem há-de perfazer-se claramente nos laços que fizer e desfizer) será parecido com o que preparamos com penoso esforço, com o amor que consiste em duas solidões se protegerem, limitarem e reconhecerem.»
in Rainer Maria Rilke, Cartas a Um Jovem Poeta
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