23.5.06

Sem moral da história (Prólogo do Folhetim da SOCA)

Se os investigadores da polícia tivessem perguntado ao Alves do Café Primavera de Abril, se sabia alguma coisa sobre a mulher vestida de azul e verde, o Alves ter-lhes-ia dito que sim, que se lembrava perfeitamente dela. Mas não perguntaram, pois nunca se lembrariam de ir a todos os cafés da cidade, muito menos aos que ficavam do outro lado.
Lembrava-se o Alves não porque fosse uma cliente habitual. Antes pelo contrário, que se lembrava bem dela por não ser uma cliente habitual. O Café Primavera de Abril só tinha clientes habituais. Claro, havia sempre um ou dois que entravam e tomavam uma bica apressada ao balcão, compravam o tabaco e as pastilhas e nunca mais regressavam. Os outros, os homens, encostavam-se e pediam mines, enquanto as mulheres se sentavam com a bica e o copo d' água e por ali se ficavam, uns e outros, sem misturas, até que fossem horas de ir para afazeres ou vidas de nada, que o café não era fino mas a bica e mine ainda a preço em conta serviam para desfazer umas horas em companhia da raça humana.

Lembrava-se o Alves que a mulher de azul e verde tinha entrado e ido directa a uma mesa, sem pressas mas sem hesitações. Que se tinha sentado e só depois olhado e chamado, como se toda a vida conhecesse o Alves e o seu café. Não conhecia, evidentemente, que o Alves não servia bicas à mesa, quem as quisesse que as transportasse, mas qualquer coisa o fez levar a bica e o copo d'água e ainda perguntar se estava tudo bem e se não preferiria antes adoçante. Não que a mulher de azul e verde fosse bonita ou tivesse qualquer coisa que chamasse a atenção de alguém. Não. O Alves não se lembrava do que pudesse ser mas, se lhe tivessem perguntado, teria respondido qualquer coisa como, olhe a bem dizer não lhe posso adiantar os porquês mas a verdade é que lá fui à mesa servi-la. A única coisa que reparei é que parecia nova. Não é nova na idade, é nova, assim, como os bonecos das lojas, é isso. Os bonecos das lojas, perguntaria então um dos polícias, que é lá isso dos bonecos das lojas e o Alves diria, se calhar por causa das etiquetas.

Lembrava-se o Alves que a mulher de azul e verde, enquanto tomava a bica aos poucos, tinha tirado de um bolso uma data de etiquetas das de cartão que se prendem com um fio de plástico à roupa. Que as tinha rasgado e deixado depois, amachucadas no cinzeiro. Lembrava-se o Alves de pensar, ainda hei-de depois ver o que é aquilo, mas tinha-se esquecido e, quando tinha dado por ela, já os cinzeiros tinham sido limpos pela mulher que, de quando em quanto, dava a volta ao balcão e às mesas. Era isso do por causa das etiquetas que lhe teria feito pensar nos bonecos das vitrines.

Lembrava-se o Alves que a mulher de azul e verde tinha pago com uma nota e guardado o troco no bolso. Não trazia mala, perguntaria o investigador, e o Alves responderia, olhe agora que pergunta, não, veja lá que estranho e na altura nem notei.

Lembrava-se o Alves de não notar mais nada de especial. Nem alegrias nem tristezas, nem retocar o baton nem telemóvel. Só uma mulher de azul e verde a tomar uma bica sentada onde só se sentavam as mulheres dos tempos mortos que desfaziam umas horas, todos os dias.

Não se lembrou mais dela, o Alves do Café Primavera de Abril. Nem quando viu, no pasquim local, que tinham tirado um corpo do rio, de uma mulher desconhecida que não trazia nada que a pudesse identificar, nem sequer a roupa, nova, comprada num hipermercado qualquer. Não se sabe se caiu ou não, se sabia nadar, não se sabe nada.

Ainda hoje não se sabe quem era. O Alves, que se lembraria dela se lhe tivessem perguntado, também não saberia.

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