23.5.06

O Folhetim da SOCA: De como desapareceram os ratos de um momento para o outro

Quando a Libéria Cristina saiu do autocarro, carreira via indirecta desde a aldeia de Onde Judas Perdeu As Botas até à cidade, trazia duas certezas na vida: nunca mais regressaria a Onde Judas Perdeu As Botas. E também não ia ser puta.

Se as cidades estremecessem antes de serem fulminadas por fenómenos da natureza, ventos ciclónicos e tempestades de raios, árvores a voar e maremotos, toda a gente teria a vida mais facilitada e, ao primeiro tremor, pessoas, animais domésticos e veículos atulhados de bens, seriam vistos a abandonar as premissas, o mais rápida e desorganizadamente possível. Mas as cidades mantêm-se quedas e sossegadas até ao momento do tarde demais, quando o céu tomba sobre as cabeças e já não há nada a fazer senão entrar em pânico e correr para lugar nenhum. Terá sido por esta razão que o chão se manteve na mesma, apesar de ter sido pisado, pela primeira vez, pelos pés da Libéria Cristina, isto não obstante ninguém a poder acusar de ser um peso-pluma.

A Libéria Cristina não era gorda. Nem era especialmente alta. Era apenas uma rapariga que ocupava espaço e que descia agora os degraus do autocarro com uma mala na mão, a atenção já em eventuais potenciais engajadores de rapariguinhas inocentes, com ofertas de bons salários, horários reduzidos e vistorias médicas regulares. Que Onde Judas Perdeu As Botas até podia ser para lá de Onde O Vento Dá A Curva, mas a tvcabo digital chega a todo o lado: a Libéria Cristina não tinha nascido ontem e sabia das coisas.

Se os houvesse, os tais engajadores, o problema seria reconhecê-los, que toda a gente ali à volta tinha ar de ser completamente normal. Famílias à espera de família, netos a apoiarem avós, maridos a refilarem e mulheres a desculparem-se com o atraso da carreira, até alguns irmãos solícitos a ajudarem irmãs mais novas com malas. Nada de suspeitos vestidos…com roupas suspeitas e com ar, enfim, também suspeito. A Libéria Cristina suspirou de alívio quando viu que ninguém se dirigia a ela, embora, nos confins do sótão do cérebro, lhe tivesse aparecido a vozinha a segredar, pois é, mas se alguém te levasse para essa vida agora tinhas um quarto onde ficar esta noite e assim, está-se a pôr tarde.

Diga-se aqui, num parênteses explicativo, que a relação entre a Libéria Cristina e a sua voz interior nem sempre era em moldes cordatos. À Libéria Cristina custava-lhe aturar aquilo, sempre ali presente no quarto esconso do fim das escadas da mente. Mas nem tirando as escadas e fechando aquele alçapão a voz se calava. Atravessava paredes, nas alturas mais complicadas e lá ia resmungando, assim como quem não quer que libérias cristinas a oiçam, mas sabendo perfeitamente que não é esse o caso, coisas como, pois é, mas se tivesses aceite o namoro agora já tinhas casa tua e pois é, mas se não tivesses aberto a cabeça do teu padrasto à sacholada, agora escusavas de andar aí a fazer a mala às pressas – embora, no último caso, tivesse acrescentado, vê lá se te despachas que passa uma camioneta às oito. Sendo muito irritante, acabava por ter a sua utilidade.

Tal como agora, que realmente se estava a pôr tarde e a Libéria Cristina lá se pôs a caminho. A cidade, distraída com o ruído que produzem alguns milhões de pessoas, continuou sem prestar atenção, embora uma ou outra pedra de calçada, das que eram sendo pisadas, tivesse emitido um muito silencioso ai. Lá está. As cidades são como tudo o resto e as pedras da calçada estão no fim da escala de prioridades: se uma conduta da água ou uma antena de televisão tivesse apresentado reclamação por escrito em três vias e com assinatura reconhecida e ameaça de providência cautelar, a cidade talvez se tivesse posto fina e acordasse do seu torpor. Mas uma pedra da calçada aos ais, quem é que quer saber? Apenas umas ratazanas dos esgotos por baixo da rua foram capazes de ouvir e, à boa maneira dos ratos, resolveram que estava na hora de avisar todas as confrarias e preparar uma longa migração para outras paragens menos ameaçadoras.

É por essa razão e não por outra que o primeiro sinal da calamidade (que se esbatia já pela cidade numa indefinição que se poderia ter mantido eternamente, não fosse a chegada da Libéria Cristina) se consubstanciou num desaparecimento súbito de ratos e outros roedores.

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