carta
Ainda tenho o presente que me deste quando fiz nove anos.
Chegava e ia logo procurar-te a casa. Ou aparecias tu, pouco depois de a minha avó dizer que já lá tinhas passado duas vezes à nossa procura. Ficávamos na biblioteca ou caminhávamos de noite pelas ruas, a falar ou a estar calados. Fumava passas dos teus cigarros.
Conseguias persuadir o dono do café, já de porta fechada, a voltar a aquecer o óleo, porque gostavas de me ver comer pratadas de batatas fritas com maionese às duas da manhã. Permitias que gastasse o gás do teu isqueiro só porque eu gostava de brincar com o fogo.
No meu ombro, ou no meu colo, encostavas a cabeça. Fazia-te festas e tu dizias que eras meu filho. Porque eu te dava mimo. Eu, pensava-te o meu amigo mais velho, e o melhor, porque eras meu confidente. A atenção que concedias às mazelas que manchavam as minhas pernas de tonalidades roxas ou esverdeadas (aquela já está a ficar verde, está quase boa), comovia-me.
Quando estava longe (que era quase sempre) enviavas-me cartas. Eram guardadas numa caixa, que se perdeu numa das minhas mudanças. Ainda espero encontrá-la. As que recebias na volta do correio quis algumas vezes ir pedi-las à tua mãe, mas nunca tive coragem. Agora deve ser tarde.
Era habitual levares passageiros na mota, por vezes mais do que dois, em passeios pelos pinhais e quintas, pelas veredas entre muros e silvados, ladeando as vinhas, os milharais. Outras vezes ia só contigo. Saíamos da aldeia e mostravas-me lugares e nomes.
Fomos um dia à cidade, às escondidas. Dessa vez recomendaste que te abraçasse com força a cintura, era mais seguro e menos cansativo; ainda era longe. Quiseste que conhecesse os teus percursos, o teu café, a tua casa, o liceu, a fachada do bar onde ias à noite. Nessa altura, tinhas o hábito de me apertar o nariz ou puxar-me de lado pelos ombros, num gesto fraterno. À volta da mesa com o tampo de feltro verde, jogávamos cartas e pousavas a mão no meu braço, quando era a minha vez. Acusavas-me de fazer batota, mas nós bem sabíamos por que eras sempre tu quem ganhava, e admirávamos-te por nos ludibriares tão bem.
Voltei uma noite e revelaste o teu receio, entretanto quase dissipado, de que tivesse estado a apaixonar-me por ti. A gargalhada que saltou da minha boca desfez-se na confusão do teu rosto, no seu sorriso desmaiado, no desconcerto. Ainda pensava, então, que estar apaixonada significava o mesmo que cobiçar pessoas muito atraentes.
Primeiro instalou-se o constrangimento. Depois tu morreste.
Chegava e ia logo procurar-te a casa. Ou aparecias tu, pouco depois de a minha avó dizer que já lá tinhas passado duas vezes à nossa procura. Ficávamos na biblioteca ou caminhávamos de noite pelas ruas, a falar ou a estar calados. Fumava passas dos teus cigarros.
Conseguias persuadir o dono do café, já de porta fechada, a voltar a aquecer o óleo, porque gostavas de me ver comer pratadas de batatas fritas com maionese às duas da manhã. Permitias que gastasse o gás do teu isqueiro só porque eu gostava de brincar com o fogo.
No meu ombro, ou no meu colo, encostavas a cabeça. Fazia-te festas e tu dizias que eras meu filho. Porque eu te dava mimo. Eu, pensava-te o meu amigo mais velho, e o melhor, porque eras meu confidente. A atenção que concedias às mazelas que manchavam as minhas pernas de tonalidades roxas ou esverdeadas (aquela já está a ficar verde, está quase boa), comovia-me.
Quando estava longe (que era quase sempre) enviavas-me cartas. Eram guardadas numa caixa, que se perdeu numa das minhas mudanças. Ainda espero encontrá-la. As que recebias na volta do correio quis algumas vezes ir pedi-las à tua mãe, mas nunca tive coragem. Agora deve ser tarde.
Era habitual levares passageiros na mota, por vezes mais do que dois, em passeios pelos pinhais e quintas, pelas veredas entre muros e silvados, ladeando as vinhas, os milharais. Outras vezes ia só contigo. Saíamos da aldeia e mostravas-me lugares e nomes.
Fomos um dia à cidade, às escondidas. Dessa vez recomendaste que te abraçasse com força a cintura, era mais seguro e menos cansativo; ainda era longe. Quiseste que conhecesse os teus percursos, o teu café, a tua casa, o liceu, a fachada do bar onde ias à noite. Nessa altura, tinhas o hábito de me apertar o nariz ou puxar-me de lado pelos ombros, num gesto fraterno. À volta da mesa com o tampo de feltro verde, jogávamos cartas e pousavas a mão no meu braço, quando era a minha vez. Acusavas-me de fazer batota, mas nós bem sabíamos por que eras sempre tu quem ganhava, e admirávamos-te por nos ludibriares tão bem.
Voltei uma noite e revelaste o teu receio, entretanto quase dissipado, de que tivesse estado a apaixonar-me por ti. A gargalhada que saltou da minha boca desfez-se na confusão do teu rosto, no seu sorriso desmaiado, no desconcerto. Ainda pensava, então, que estar apaixonada significava o mesmo que cobiçar pessoas muito atraentes.
Primeiro instalou-se o constrangimento. Depois tu morreste.
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