31.5.06

"Meus senhores, eu sou a água que lava a cara, que lava os olhos" *

Todos os dias, a seguir ao jantar, a conversa já em velocidade de cruzeiro, das que vogam lentamente entre marcos de quilómetros e alguns candeeiros de entradas e saídas e áreas de serviço, quebrada por silêncios confortáveis de pensamentos alinhados, ele levantava-se, que se deixasse ela estar, ele tratava do resto, ia à cozinha, dirigia-se à máquina acabada de comprar que viera susbtituir a anterior (modelo parecido mas menos design), agarrava em chávenas e pires e colheres, tratava do resto e regressava. Servia-a amavelmente, deixa-te estar que eu trato disto, queres duas colheres de açúcar ou adoçante, trouxe os dois, hoje só uma, respondia ela, mas do verdadeiro, dieta mas nem tanto e ria-se e ele também e estendia-lhe uma mentira bem tirada. Era excepcional a tirar mentiras, percebia de temperaturas do momento e de jeitos e outras coisa precisas e nunca usava nada que fosse de supermercado, pacotes embalados a vácuo, nem pensar: era a sua própria mistura, que trazia de sabes lá o que eu corri para encontrar esta, é realmente muito boa, não é? E ela concordando, bebendo a mentira deliciada, acendendo um cigarro e suspirando enquanto estendia as pernas, uma maravilha, sabe lindamente, querido! E assim se ficavam, numa serenidade feita desse perfume, que ela saboreava no momento melhor do dia, contava às amigas, é o melhor momento do meu dia, quando estou ali absolutamente relaxada e sossegada, a beber aquilo, ele pode não saber cozinhar, mas eu desculpo-o porque é realmente especial aquela altura do nosso dia.

Ele ia variando para ela não se fartar do mesmo sabor, sabes lá tu o que corri hoje para encontrar esta e ela, grata, sorridente, feliz, és mesmo bom para mim, tenho tanta sorte, ele satisfeito com aquele resultado, o trabalho que dava compensava largamente, e todos os dias repetia os mesmos gestos, uma mentira sempre bem tirada, não era preciso mais nada.

Às vezes ela dizia, olha hoje se calhar não, preciso de me deitar cedo, vou só fumar um cigarro e ele, sempre solícito, espera que tenho ali outra coisa e ia à cozinha, tirava chávenas e pires e colheres, fervia água e misturava mentiras em folhas que depois coava e, quando estendia a tisana, dizia, vais ver que com esta ainda dormes melhor e ela, agradecida, contente, que simpatia, que charme, que sorte tenho, amanhã quando contar às minhas amigas vão ficar verdes de inveja, quem lhes dera esta felicidade todos os dias, realmente não sei porque complicam tanto, basta uma chávena, é tudo tão simples.

Não sabe bem quando começou a ter insónias. Acordava de noite em pânico, estendia os braços, às vezes encontrava-o, outras não, claro não está cá hoje, que parva, ele disse-me, ainda estou meia a dormir e dava voltas e voltas na cama sem o encontrar e claro, as insónias eram disso, mas dormia mal, cada vez pior e sentia-se assim mais ou menos pouco em forma durante o dia, é de não dormir, não sei o que tenho, vai ao médico aconselhavam as amigas, que te andas a definhar, essas insónias estranhas, eu se fosse a ti ia e ela lá se convenceu. Minha senhora, disse o doutor, depois de exames e análises, não tem nada, mas deveria evitar beber coisas que lhe tirem o sono antes de dormir, nem uma tisana? Nem uma tisana, minha senhora, às vezes essas tisanas calmantes sabe-se lá o que têm dentro, beba água que limpa o sistema, muita água da torneira, beba água minha senhora e durma, que o seu mal é sono.

Nessa noite, depois do jantar, ele levantou-se e disse-lhe deixa-te estar que eu trato de tudo e ela respondeu, amor, só um copo de água da toneira, deixa-te estar tu, vou eu buscá-lo, levantou-se e nunca chegou a ver o olhar de total e absoluto pânico dele.

* título descaradamente gamado de poema de Manuel Maria Barbosa du Bocage

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