16.7.06

até ao lavar dos cestos

Os cachos caíam, pesados e suculentos. A golpes de tesoura, lâminas curvas como pequenas foices antagónicas incidiam implacáveis sobre o pedúnculo. Tinha que ser no ponto exacto: nem demasiado rijo, nem excessivamente tenro. Sobre o ritmo incerto do tchic repetido pelas molas, do restolhar das folhas e do baque dos cachos ao cair, erguiam-se as vozes das mulheres, em cantilenas.
No topo da fila de videiras colocava-se um grande cesto. A verga espessa que o fazia forte e durável, entretecida numa ordem rigorosa, conservava fraca memória dos salgueiros que contornavam a vala, lançando para o ar as hastes despenteadas entre o açafrão e o laranja.
A colheita era deitada em baldes de plástico, quase sempre preto, transportados depois a custo até aos cestos. Estes, quando cheios, eram levados à cabeça pelas mulheres, em cima de rodilhas de pano entrançado.
Havia uvas verdes, roxas e rosadas. Deitavam sumo para atrair as moscas. Muitas, esborrachadas, fermentavam ao sol. As mãos pegajosas afastavam o cabelo do rosto e esfregavam as picadas dos insectos e as dores. No fim do dia todos tinham o mesmo cheiro: acre, avinhado, enjoativo, misturado com suor quente.
Quando a vindima acabava, todos descalçavam as botas e mergulhavam as pernas nuas nas dornas. O perfume das uvas pisadas era já um pouco ébrio e espalhava-se sobre a vinha, então despida de frutos. Sobre a cepa, ficavam apenas as folhas femininas da vergonha e do pudor, que em tempos ancestrais foram, para muitos, o símbolo da vida.

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