26.10.05

Pedaços de papel colorido

Em casa da avó, no meu quarto, havia uma cómoda das antigas, muito escura e pesada, cujas gavetas custavam imenso a abrir. Na verdade aquele quarto não era meu e, na cómoda, tinha apenas o direito, durante as longas férias de verão, a usar uma das gavetas de cima que tinha metade do tamanho das seguintes; mesmo assim era suficiente.
O quarto não era meu, era de uma tia que já lá não vivia. Rapariga nova, casada, raramente ali passava férias, ocupada com os filhos noutras férias de praia com o marido e de campo com a família do marido. Mas a cómoda ainda tinha coisas dela, de outra vida, que já não eram precisas.
A última gaveta da cómoda era a mais difícil de abrir, tal era o peso. Cheia até acima. Eu, fascinada pelo conteúdo, de vez em quando lá a tentava abrir e ficava a olhar, sem mexer: nunca lhe toquei, uma menina de bem não se deixa arrastar pela curiosidade, mesmo quando é grande. Mas não me conseguia impedir de abrir a gaveta e olhar: parecia-me aquilo uma coisa gigantesca, enorme, imensa, uma coisa de tal forma exagerada que me custava a acreditar que fosse possível.

A gaveta estava cheia até acima de cartas. Dezenas, centenas, milhares (sem qualquer exagero) de cartas. Cartas endereçadas ao marido, escritas durante muitos anos de namoro, a letra larga e redonda, muito legível de menina ainda quase garota, para o Exmo. Sr.; no remetente apenas o nome próprio seguido da morada: ambas as moradas na mesma cidade. Milhares de cartas escritas num quarteirão e enviadas para um quarteirão muito perto, meia dúzia de ruas de distância, milhares de cartas com milhares de palavras de menina enamorada, ainda quase criança, visível na escolha dos envelopes e dos papéis, cores felizes e brilhantes, vermelhos, amarelos, verdes, azuis, alguns brancos, outros poucos de cores mais raras (quase que se imagina a alegria de menina em encontrar Oh! Envelopes e papéis de carta em lilás ou cor de rosa, mas sempre cores muito fortes, cores da felicidade que se envia assim, em vermelho ou amarelo).
Aquele amontoado de cores, mais até do que a quantidade, mas por causa dela evidentemente, era aquilo que me atraía à gaveta, que me fazia doer os braços para a abrir e ficar a olhar. Não sei, mas aquilo deixava-me feliz também, sem saber muito bem porquê.

Um dia, a tia apareceu. Uma senhora elegante e bonita, tia adorada de amável e de piscadelas de olhos aos disparates de sobrinhos. Eu estava no meu quarto, o quarto que tinha sido dela, que era dela ainda. Disse-me, deixa-te estar que preciso da tua ajuda. Dirigiu-se à gaveta das cartas e abriu-a. E começou a tirar cartas, sabes estas cartas escrevi-as eu ao teu tio, quando namorávamos, são muitas não são? e eu que sim, que eram e bonitas também e ela começou a rasgá-las. Vem ajudar-me a rasgar isto tudo, pediu-me e eu, mas porquê? porquê? e ela, sempre a sorrir, já não as quero, melhor rasgar tudo.

Passámos muito tempo a rasgar tudo. De dentro dos envelopes soltaram-se palavras muito grandes e redondas sobre vermelhos e amarelos e verdes e azuis. Os pedaços foram-se misturando em montes no chão, nós as duas sentadas ao lado, a tirar mais cartas da gaveta, a rasgá-las; até à última. Depois, a tia, sem nunca deixar de sorrir, juntou todos todos aqueles pedaços coloridos em grandes sacos e levou-os para serem queimados.

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