6.11.05

Família acidental

Embora a veja inúmeras vezes aqui pelo bairro, é geralmente às quartas-feiras que nos sentamos lado a lado, no autocarro. Para ela, é sempre a primeira vez. E a história é repetida. Coerente. Monologada. Noventa e quatro anos. Viúva. Os filhos emigraram para a Holanda há muitos anos. Desistiram dos regressos anuais há uns poucos. Talvez pensem que eu morri, sugere. Ouço-a com atenção. Gosto da maquilhagem neo-realista. Às vezes removo-lhe uma linha da estola gasta, ou aliso em jeito de afago a manga enxovalhada da blusa. Ela não se importa. Ou nem repara. Olhar azul perdido num ponto inexistente. Saímos na mesma paragem, eu com rumo, ela sem. Mãos nas mãos apertadas. Dois beijinhos. Às vezes, não resisto, uma espécie de abraço. Até para a semana. Ela esquece. Eu não. E às quartas-feiras tenho mais família.

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