29.11.05

pão queijo, queijo pão

As cebolas partidas caíram na água com um ruído abafado, chof. O descascador rapava a casca das cenouras em línguas compridas enquanto ela pensava no que lhe tinham contado. Imaginava o homem, tão apreciado, inteligente e divertido, cheio de qualidades. Uma qualquer conspiração das circunstâncias tinha-o conduzido ao alcoolismo. Lembrou-se de juntar os tomates que tinham sobrado da salada da véspera. Uma batata grande, dois dentes de alho, o resto dos coentros (já tinham as pontas amarelas), um pouco de sal. O reflexo frio e deformado do seu rosto, na tampa de aço da panela que tinha ao lume, desconcertou-a.
O tipo falhava constantemente, provocava o desgosto à sua volta. De cada vez que a situação se degradava era-lhe dada nova oportunidade. O feijão verde era carnudo. Com uma incisão precisa, retirou-lhe o fio e partiu as vagens em tirinhas oblíquas. Era verdade que, a cada oportunidade, entre o esforço inicial e a reincidência, os intervalos eram maiores e os estragos menores. Mas ele voltava sempre a beber.
Mexeu os legumes e voltou a tapar a panela, irritada. Curiosa, esta cegueira de quem concede prolongamentos sucessivos, pensou. Como se do outro lado houvesse também a vontade de se atribuir a si mesmo mais uma chance: de provar que não se enganou na admiração, no respeito, na afeição que se sente por quem se escolhe. E claro, o investimento acumulava-se, era cada vez mais difícil declará-lo a fundo perdido. Sorriu.
O arroz de frango da véspera era pouco, ainda por cima o filho tinha trazido um convidado. Não se importava, porque lá em casa havia sempre lugar para mais um. Mas aquilo não ia chegar.
Despejou a caneca de arroz sobre a pequena poça de azeite a fervilhar. Os grãos giravam à volta da colher de pau, mais escuros, brilhantes e aparentemente translúcidos. Chegara um dia em que a paciência se tinha esgotado. Interrogava-se se seria o fim dele. Agora é que ele se ia afogar numa garrafa de gin. Encolheu os ombros, acrescentou a água a ferver, o sal e cobriu o tacho.
E daí, talvez não. Podia ser que agora ele, finalmente, mudasse. Há pessoas que só acordam no fim, quando o jogo acaba. Só assim percebem que ele pode acabar. Triturou os legumes, juntou o feijão verde e tirou um frasco do frigorífico.
Salsichas às rodelas no fundo teflon da frigideira: bolinhas côr de rosa num tecido escuro. Pensou num vestido dos anos cinquenta. Tinha reparado à tarde que se surpreendia com a sua imagem, avistada acidentalmente num espelho. Não que estivesse diferente, mas constatava que pouco se olhava no espelho para além do aspecto funcional. Aproveitou a gordura para fazer uns ovos mexidos. Tinha sobrado um pouco do líquido em que cozera o frango. Ainda bem, podia usá-lo para o acrescento.
Porque seria? Na outra altura em que isso lhe acontecera, era a pressa, o desinteresse por si mesma, a certeza de que se acharia feia e triste que, suspeitava, a tinham afastado dos espelhos. E agora? Misturava com delicadeza o arroz da véspera com os ingredientes remediados do dia. Troçou de si mesma, da pretensão de ter permanecido especial para quem considerava dessa forma. I know I’m a little shallow – repetiu as palavras da música que ouvia. O assobiu da panela de pressão arrancou-a ao incómodo desta hipótese: a sua vaidade poderia depender do apreço dos outros? Sacudiu a cabeça: não, não era assim. Não. Talvez fosse de tanto olhar só para dentro.
Baixou o lume, foi ao quarto de banho e penteou-se, sem tirar os olhos do espelho. Examinou uma borbulha mínima no queixo. Estou mais magra, constatou.
Regressada à cozinha, desligou o fogão e tirou o avental. Chamou os miúdos em voz alta e pôs a sopa na mesa.

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