3.10.06

A minha vizinha e outros quinhentos

Que me perdoem os queridos que gostam das coisas sérias mas eu não me posso permitir levar a vida, ou o pouco que me resta dela, lá muito a sério porque posso andar aqui a arrastar-me pelos cantos e a maldizer as cruzes que me carregam nas artérias inflamadas mas não estou amargurada e quando chegar o dia hei-de ir de cara bem lavada e a cheirar a perfume caro que eu guardo sempre o melhor para o fim!

Gosto muito da minha vizinha. É uma mulher quarentona, daquelas avantajadas. A gente às vezes encontra-se à janela. Eu a bem dizer passo lá muito tempo a observar as telenovelas em que as pessoas transformam as suas vidas privadas. Já assisti a tanta cena da minha janela que contando ninguém acreditaria! A minha vizinha de vez em quando aparece no beiral, de lenço na cabeça e de peitaça praticamente à mostra. Tenho inveja da peitaça dela. Eu tinha uma assim quando era nova. Agora levou sumiço depois de tantos anos de esfreganços e chupanços ilícitos. Já ouvi falar dessas falsas que se põem lá por dentro da pele mas isso é quando estamos naquela meia-idade indefinida em que quase só pela inclinação delas os homens nos situam mais perto dos trinta ou já bem para lá dos quarenta.

Mas eu cá já não gasto dinheiro nessas coisas. A minha última aquisição vai ser o meu caixão e mesmo assim já ando aqui angustiada porque os somíticos dos afilhados, que andavam sempre de roda de mim a pedinchar sempre que vinha a Páscoa ou o Natal, agora de repente lembraram-se que não vale a pena gastar muito nessa última morada da tia esclerosada e escolheram-me o mais barato lá do catalogo. "E vai ver que aqui fica mesmo bem tia! Você até está tão magra!" Atrevidos! Até parece que nessa altura eu me vou apoquentar se fico mal ou bem na fotografia assim ali encaixotada!

Ontem perguntei à minha vizinha, só mesmo para me distrair um bocadinho com ela que a mulher é uma verdadeira força da natureza. "Olhe lá vizinha, o que acha você que anda aqui a fazer?" Ela virou-se e sorriu, uma força da natureza! "Ai vizinha, então agora tenho que coser três pares de meias do Manel que o homem às vezes parece que tem patas em vez de pés. E tenho tanta roupa para lavar que sou capaz de ficar aqui todo o ano a dar voltas e voltas aos sacos de roupa suja que não têm mais fim!" Tive pena da minha vizinha, cujo objectivo é apenas coser, lavar e cozinhar para o homem dela e mais uns quantos que aparecem sempre à procura de cama, comida e roupa lavada. Como é que ainda há uma alminha assim, uma verdadeira força da natureza, que passa dias e dias a fio ali fechada, lavando, passando, cosendo, assando sem pensar em mais nada? Enquanto outros se dão ao luxo de perder tempo a pensar nos "quem sou eu?" e "que faço aqui?"

É muito curta esta vida que chega ao fim. Quase não chegamos a saboreá-la… quase não chegamos a vivê-la. Dizem-me que há quem deixe obra e que isso é bom! Bom?! Para quem? Deixando obra ou não, o que interessa isso aos que já cá não estão? Sentir-se-á melhor o homem que viveu em função dos outros ou aquele que viveu em função de si próprio? E será que isso interessa a não ser ao próprio?

Ai mulher… tu andas a matutar demais! Devem ser as sinapses histéricas a gastar os últimos cartuchos dentro desta cabecinha maravilha. Quis ser tudo e não fui grande coisa! Paciência! Pelo menos tentei fazer um grande estrilho! Não deixo grande obra e o dinheirito também tá todo contado. E as minhas memórias essas levo-as comigo que já não há tempo nem espaço para contar tanta peripécia que coube numa vida tão curta e aparentemente tão simples.

Pois gozem bem a vida. Façam dela uma festa, uma celebração! Aproveitem todos os bocadinhos, sempre que houver ocasião e mesmo que não haja disposição! Apetece-me dizer um palavrão! Fuck it! Go and grab life by the balls and squeeze them until there's nothing left! (e que me perdoem os leitores masculinos a quem esta imagem seguramente arrepiará mais do que inspirará!)

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