8.11.05

Nem só de fome morre o homem, ou, não há pior morto, que aquele que continua vivo.

Nunca há desculpa para a violência, só causas que a motivam.

Estas coisas dos motins são tão previsíveis, que não percebo como não aconteceram antes. Mas, as pessoas julgam o quê? Que basta permitir que as pessoas tenham uma casa para não ficar mal na fotografia dos nossos países e que se continue a impedir a verdadeira integração de todos aqueles que as habitam?

Só quem nunca passou tempo em bairros sociais de emigrantes, pode não ter a mínima consciência do que lá se passa mas, por outro lado, quem de seu perfeito juízo se mete num local daqueles sem necessidade, isolado do mundo, sem qualquer tipo de funcionalidade social; como um café, uma mercearia, um cabeleireiro. Sem raízes, sem família, sem velhos, sem outras pessoas que não putos, deixados ao deus-dará enquanto os pais trabalham o dia inteiro para terem direito àquela casa, ao mísero pão que comem no outro dia de manhã.

Sabem, as crianças têm uma necessidade inata de contacto, de se integrarem nos grupos, de pertencerem. Sem ninguém adulto, ou de família por perto, ligam-se naturalmente umas às outras, aprendem dentro do grupo a poderem pertencer e, os únicos valores que uma criança pode transmitir a outra, são a violência, a dominância, a troca de uma afectividade através da conquista, do poder.

Não há crianças boas, não há um Rousseau no fundo de cada um de nós. A sociabilização, a educação, são coisas dolorosas, que nos apartam das nossas vontades mais básicas, mais instintivas. O bem só aparece ao fim de muita pancada que é dada no mal, o bem aparece pela morte em nós da violência e, isso em si é violento.

Se não há necessidade do bem, ele nunca aparece nos termos com que a nossa sociedade o representa, nos valores mais cristãos; que no fundo estão no seio da nossa cultura ocidental e, que se propagam de geração a geração, através do medo, da culpa e da exclusão.

Temos medo de ser excluídos, por isso aceitamos a sociedade tal como ela se nos apresenta mas, se nascermos excluídos, se crescermos excluídos, então vamos ter medo de quê? O que temos a perder? Que nos matem? Que nos prendam?

Quem é um excluído está morto à priori, está preso à priori e a única arma que possui em relação aos restantes, é exactamente aquilo que lhes fizeram a eles, não terem nada, ficarem sem nada. A burguesia treme, só de pensar nisso.

Eu, muito sinceramente, se estivesse onde eles estão, provavelmente seria daquelas que liderariam uma reacção contra, não interessa a quem, apenas contra, contra qualquer um que não fosse igual a mim, qualquer um que me tivesse feito ser assim; excluída, invisível, numa sociedade em que tudo me injecta pelos olhos dentro mas, que não me deixa ter nada, que não me deixa significar nada.

Por isso, compreendo e aceito este tipo de manifestação brutal, se fosse comigo faria o mesmo e, se for contra mim, defender-me-ei de todas as formas que puder.

Eu não estou daquele lado. Estou deste, e isso faz-me defender aquilo que é meu, mas não me deixa cega quanto às suas condições de mortos vivos, isolados do mundo e fechados em pequenos espaços. Espaços esses que nunca serão visitados pela grande maioria dos outros; que pensam sempre, que só os animais mais domesticados se atreverão de lá a sair.

E é por isso também, que se um dia este tipo de coisas me cair à porta ou naqueles que são meus, eu lutarei até à morte se for preciso. Mas não me isentarei de culpas, apesar de não me dedicar só a cultivar a contra-insensibilidade do outro lado das minhas fronteiras, longe de mim, num local em que descanse a minha consciência e alivie o meu IRS, enquanto jogo playstation, enquanto ando em carros de luxo, enquanto compro roupas de marca e almoço em restaurantes à beira do mar, enquanto eu mostro a todos aqueles que me rodeiam o quanto bem sou capaz de fazer aos necessitados.

Pagar aos outros para fazerem por nós, não é o mesmo que fazermos.

Se qualquer um de nós aliviasse a sua insensibilidade dentro das suas fronteiras, em pequenos gestos de reconhecimento àqueles que “não são como nós”, àqueles que trabalham para nós e deixam de poder estar com os filhos e lhes passar os valores que acreditamos serem os certos; se percebêssemos que para passear romanticamente com um namorado num local limpo, agradável, e ter um dia de sonho, uma série de crianças ficam sozinhas na rua; se nos dignássemos a olhar todos aqueles que não vemos, então, o mundo, o nosso mundo, não teria tantos excluídos.

Não merecemos isto? Claro que merecemos, mas tal como o cancro ou outra coisa que nos assusta, nunca acreditamos que nos chegue perto, por isso só lidamos com ele quando nos ataca; até lá fechamos os olhos e debitamos pena por aqueles que sofrem.

Azarucho, agora é a nossa vez de sofrer, fugimos dos mortos vivos, percebendo que nem só de pão e casa vive um homem.

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