16.11.05

não é um conto de Natal

Aos vinte e três anos, quando ficou grávida, foi a confirmação de um destino.
Lembrava-se da primeira ida à ginecologista, na companhia da mãe. Ainda na sala de espera, aproveitando estar a mãe a fazer crochet, lá tentou A mãe, se quiser, fique aqui. Está a fazer isso... Não me importo de ir sózinha. Mas a mãe respondeu, sorridente Não, queridinha, claro que te faço companhia.
Lá dentro, depois do exame, a mãe inquiriu discretamente acerca de uma provável infecção, que traria a filha sempre molhada. A médica respondeu Não tem nada. Há mulheres com mais sorte do que outras, piscou o olho, já vêm preparadas!
Quando saíram, perguntou à mãe o que quereria ela dizer, preparadas para quê. Já não se lembra das palavras exactas da mãe, mas na altura explicou-lhe que estava mais preparada do que as outras para ser mãe. Como conhecia bem o que se passava dentro de si, imaginou que assim os bebés escorregariam melhor cá para fora e não pensou muito no assunto.
Anos depois percebeu o que aquilo afinal significava mas, entretanto, já se tinha persuadido que a sua aptidão para a maternidade era tão elevada quanto o seu desejo de ter filhos.
Dois meses depois de planos mil em torno do bebé que haveria de nascer, num dia 24 de Dezembro, o seu corpo, depois de o matar, expulsou o embrião, directamente em cima da sua mão. Era pequeno. Igual às imagens reproduzindo visões intra-uterinas, mas mais real: mesmo morto, era reconhecível como um ser de carne. Era o seu filho.
Há muito que já sabia que as coisas más não acontecem só aos outros e, mesmo assim, ficou devastada. Depois prostrada.
A seguir tentou outra vez. Ficava grávida assim que largava a contracepção, aí não tinha dificuldades. Ficar grávida era fácil. Difícil era manter-se grávida. Desta vez ficou mais tempo.
Um dia sentiu que alguma coisa não estava bem. Era uma intuição, ou um sinal do corpo que a ciência ainda não explica. No hospital ficou a saber que o bebé já estava morto, mas a gravidez continuava activa. Aconselharam-na a aguardar a expulsão natural, para não danificar o útero, vigiando o impasse. Durante aquele mês sentia-se uma campa viva. Desforrava-se no humor negro. Quando lhe pediam segredo, dizia Já sabes, eu sou um túmulo e quando lhe perguntavam É mesmo verdade, respondia Juro, pela saúde do meu filho, criando algum embaraço.
Quando chegou o dia, foi uma cena apocalíptica. Todo o corpo em convulsões. Nua, sentada na retrete onde despejava metade das suas entranhas e do seu sangue, com uma bacia no colo, para recolher o resto. Com o pé, empurrava a porta da casa de banho, impedindo a avó paterna do bebé perdido, deixada pelo progenitor em sua substituição, pois fugira, aturdido pelo sofrimento. Pedia-lhe gritando, entre golfadas de vómito, que, por favor, não entrasse, mas ela conseguiu forçar a porta. Além da culpa absurda que sentia, por saber o seu corpo capaz de tamanha atrocidade, percebia que precisava de estar só naquela morte e nem isso conseguiu. Estava ali, nua, no meio de um cheiro nauseabundo, os seus sonhos no fundo da pia, a alma num alguidar.

Acabou por ter filhos. Consolou-se dizendo a si mesma que se tivesse tido os outros, nunca teria tido aqueles. E eram aqueles os seus filhos. Que a fizeram voltar a gostar do Natal.

referer referrer referers referrers http_referer Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com