Arturo era um homem desiludido. Era a primeira coisa que se lhe lia no rosto e nos gestos, pesados e lentos.
Arturo era o proprietário de um pequeno restaurante vagamente italiano situado na esquina de uma rua simpática de um bairro agradável. Havia um separador no meio da rua, ladeado de árvores, onde nas tardes de verão os
seniors do bairro jogavam com bolas de um metal brilhante e liso, que lembravam gotas de mercúrio caídas de um termómetro gigante. As bolas chocavam umas contra as outras com um
páa metálico que atraía sempre Arturo para a porta do restaurante. Ficava encostado na ombreira da porta, e observava os jogadores sem nunca se lhes juntar, o olhar vagamente perdido de quem não está verdadeiramente alí. Com o fim da tarde os jogadores juntavam-se a Arturo, sentavam-se ao balcão do restaurante, e bebiam cervejas em silêncio, num arremedo de convivialidade mais próprio de famílias do que de companheiros de jogo.
Entretanto na esplanada do restaurante juntavam-se outras famílias, estas mais faladoras: o pai, a mãe e dois rapazes pequenos, que comiam sempre saladas, e discutiam sempre apenas entre duas garfadas; as duas solteironas do prédio em frente, que diziam mal dos maridos das outras; e, às vezes, um grupo de donas de casa que entre copos diziam mal dos próprios maridos. Arturo deixava-se ficar no bar, em silêncio e imóvel, e só um sinal vindo da esplanada o fazia mover-se e sair com cervejas na mão. Era, na verdade, uma forma de eficiência muito própria, que não gastava energia com movimentos supérfluos, a saída para a esplanada em passos ensaiados muitas vezes, precisos e lentos, um dois três até à mesa do canto, meia volta mesa do meio, quatro, cinco, seis voltar ao balcão.
Esta mecanicidade de movimentos, esta poupança de energia, tinha-a herdado da mãe, como aliás quase tudo. A mãe de Arturo, Simone, era loura e pesada, e tinha nos olhos claros a resignação que quem nunca se soube bela nem feliz. Era dela a cozinha do restaurante, e aí tinha criado o seu domínio, movendo-se lenta e economicamente entre os balcões. Quando não tinha para quem cozinhar – o que não era raro, sobretudo de Inverno, quando não havia esplanada para atrair famílias - , sentava-se numa mesa ao fundo do restaurante, onde tinha recriado a sua sala de estar, completa com
naperons, candeeiro de leitura, jornais de lavores e cesto de costura, e aí passava a noite em silêncio, sem nunca olhar o filho, que encostado ao balcão servia cerveja aos habituais. A semelhança entre ambos era tão evidente, que seria fácil esquecer que Arturo tinha tido um pai, não fora pelo seu nome, e pelo menu vagamente italiano do restaurante.
Já tinham passado muitos anos desde que o pai de Arturo morrera, mas a rotina da mulher e do filho não se alterara. Continuavam a trabalhar no restaurante, ela na cozinha, ele ao balcão, e ainda viviam na mesma casa. Tinham um acordo tácito, contruído durante anos de vassalagem a uma personalidade mais forte, que lhes permitia viver com um mínimo de comunicação, num ballet de exclusão minuciosamente coreografado.
Às vezes Arturo sonhava. O sonho era sempre igual. No sonho, a mãe estava morta, e ele sentia apenas um alívio imenso. Algumas vezes acordava e o sonho acabava aqui, e deixava-lhe um sabor amargo a culpa que durava dias a fio. Outras vezes continuava, e no sonho Arturo fechava o restaurante, fechava a porta de casa, e saía com uma mala para nunca mais voltar. Via-se então noutro país, com sol, oliveiras e vinhas, um ar doce de fruta e flores, húmido de sal. Aí era feliz como nunca tinha sido feliz, e sentia o coração expandir-se dentro do peito, como quem respirasse profundamente, até estar tão cheio, tão pesado, que o peito se lhe apertava, afogando-o, e a pressão tinha de se aliviar em lágrimas, que lhe caíam pelo rosto redondas e quentes. Mas então acordava sempre, e voltava à rotina como se nada fosse, os olhos já secos, o peito espaçoso e vazio.
Quando estava acordado, Arturo pensava. Pensava e repensava, ensaiava mil vezes um discurso que sabia que nunca faria. E esperava. Esperava que nunca tivesse que o fazer, que o tempo fizesse o seu trabalho e o poupasse.
E de certa forma, foi o que aconteceu – embora o tempo tivesse mostrado um certo humor negro no fim.
Um dia o restaurante não abriu, pela primeira vez em muitos anos, num dia que não o de Natal. E também não abriu no dia a seguir, nem no outro, nem na semana seguinte. A porta só foi aberta duas semanas depois, por uma Simone de negro, olhos brilhantes e passos ligeiros, que convidou um homem de bigodes aguerridos e físico rotundo a entrar. Sem um olhar em volta, entregou-lhe as chaves e voltou a sair. Parou na ombreira da porta, e sorriu para o taxista, antes de lhe dizer: para o aeroporto, por favor.