Libéria Cristina! Ouviu-se do cimo das escadas, depois do estrondo da porta de alçapão: não era um estrondo de madeira a cair ao chão por ter sido largada; era um estrondo de quem atira uma porta fora e uma voz muito pouco, ou nada mesmo, preocupada sequer com detalhes como degraus, com a pressa de se atirar à jugular mental de Libéria Cristina.
Façamos aqui uma pequena paragem: um parênteses dedicado ao leitor. Que se explicou anteriormente que a Libéria Cristina era uma mulher que ocupava espaço. E essa característica (a de ocupação de espaço) é um facto dinâmico que obedece a uma lei física, totalmente comprovada: criaturas que ocupam espaço têm sempre a tendência para ocupar mais espaço. Crescem, alargam, aumentam, por assim dizer. E eis que a Libéria Cristina passa a ocupar mais espaço; sem culpa, coitada! Que, como todas as criaturas que obedecem a leis imutáveis da física, não tem outro remédio, é obrigada a isso, não há outra solução: a Libéria Cristina cresce de uma personagem de segunda, um
agora-apetece-descrever-uma-libéria-cristina, e transforma-se (repita-se: sem culpa dela e, quase que se apostaria! Sem grande vontade também!) numa heroína de obra trágica, a portadora do vírus da destruição total, enfim, coisas dramáticas que ainda estão por inventar a esta altura da história. Assim sendo, é nossa obrigação literária tratá-la com o respeito que merece: tiremos-lhe, pois, o artigo definido e regressemos à voz do primeiro parágrafo, que está, neste preciso momento, a esfregar as partes que sofreram mais com a queda pelas escadas abaixo.
Os corredores e escadas do cérebro não são susceptíveis de mapear com facilidade, já que possuem uma irritante mania de mudarem de sítio, abrirem para outras portas, fecharem saídas, tornarem-se intermináveis, compridos, infernalmente infinitos, parados sem irem dar a lugar nenhum, um labirinto incompreensível para a grande maioria dos detentores de cérebros. A voz interior de (agora sem artigo definido) Libéria Cristina gostava de se sentir em cima dos acontecimentos e tinha escolhido, como residência permanente, o sotão do andar mais alto com vista, que Libéria Cristina disponibilizava com alguma má vontade (como se sabe). Sem razão. Aquele arranjinho era simpático para as duas, já que a voz podia sempre fazer de conta que naquele momento estava entretida a observar outras coisas pela janela e nem se tinha dado conta disto ou daquilo, quando não estava para ser incomodada; e Libéria Cristina podia sempre alegar que não ouvia nada já que a outra fechava a porta.
Que era exactamente o que tinha acontecido desde que a voz, acordando de repente de uma série de exercícios de meditação - sob a a forma de cálculo de raízes quadradas - para se manter musculada, se tinha posto aos gritos a chamar Libéria Cristina que, por sua vez, tinha feito de conta que não tinha ouvido nada e tinha prosseguido com o seu afazer entre mãos.
A voz calou-se e começou a calcular probabilidades e vias de comunicação; que o caso era sério e afigurava-se necessário uma abordagem mais indirecta. Estava em causa a sua própria existência, pois se o cérebro estoirasse num frente-a-frente com a realidade, lá se iam escadas, sotãos com vista e outras regalias, até à próxima encarnação.
Liberiazinha, decidiu a voz. Liberiazinha! Estás a ouvir agora? Vê lá tu que tinha a porta fechada e se calhar nem me ouviste chamar! Olha, era para te perguntar se acaso já viste algum anúncio de quartos a ver se dormes sossegadinha esta noite, que estava aqui distraída a ver uns ratos ali naquele canto que iam com uns sacos e a puxarem umas malas com rodinhas e nem vi por onde é que ias...viste?
- Vi o quê?! perguntou Libéria Cristina com muitos maus modos.
- Os ratos, minha linda, os tais ratos!
- Não vi nada disso!
- Ah. E quartos?
- Também não, mas vamos andando...
- É melhor é, que se faz tarde.
Libéria Cristina saiu da sua imobilidade e começou a mover-se. A voz foi subindo as escadas para o seu sótão muito devagarinho, a fazer de conta que nem tinha visto a ponta do sacho, ainda com as marcas, a ser arrumado à sucapa na mala.
Quando chegou lá acima, fechou a porta com muito cuidado e foi a correr para a janela. Era o que esperava. Jacinto Jagunço Facínora (Júnior) eventual potencial engajador de promissoras futuras profissionais de vida fácil e vistorias médicas regulares (a informação estava no ficheiro virtual que acompanhava sempre as vistas da voz, numa transparência de dados sobrepostos à imagem, processados pelo centro computacional de Libéria Cristina) tinha tocado num braço feminino pela última vez na vida e estrebuchava ainda, agarrado à falta de um pedaço de jugular.
A voz suspirou. O caso era grave.
Nessa altura o turno de manutenção do centro computacional foi rendido e a transparência alterou-se. Que estranho, pensou a voz. O que é isto, um vírus? O ficheiro apresentou um aviso de possibilidade de mismatch de identificação e as novas coordenadas surgiram, vindas de uma outra voz já a sumir-se, que acenava ainda desesperadamente do alto da janela respectiva: Jacinto Janeiro Figueiredo (Júnior), estudante, angariador de respostas ao público, para pesquisas de mercado sobre amostras de novos produtos do sector alimentar.
O caso era ainda mais grave. E depois, havia ainda o problema do protocolo assinado com as vozes mentais dos restantes seres vivos que nunca tinha ficado bem definido nos termos da solidariedade póstuma. A voz fez o que lhe era humanamente possível, naquele preciso momento: ligou a televisão do quarto no tvshop e preparou-se para um longo período de reflexão, enquanto Libéria Cristina prosseguia no seu caminho sem entraves, em direcção a sabemos lá nós, aqui e agora.
(o próximo capítulo será escrito pela China Blue)